O português já é gourmet

Surfando na maré crescente da globalização, o português vive a sua era de Global Citizen, na qual a simples menção do termo gourmet transforma o mais mundano dos conceitos numa experiência requintada. Com esse simples vocábulo, qualquer produto, ideia ou palavra eleva-se do ordinário a um objeto de desejo supremo.

O hype é a moeda de troca. As expectativas, por sua vez, estão tão infladas quanto os preços. O café tornou-se uma forma de arte líquida confeccionada por baristas que ostentam mais certificações do que um sommelier de vinhos de Bordeaux. Quem nunca foi a uma coffee shop para pedir um café coado, mas saiu de lá com um latte macchiato na mão e sem entender como o preço quadruplicou?

Falar o português “puro” — que, já adianto, não existe — é tão last season que nos faz querer um dicionário de bolso, só para certificar de que ainda falamos a mesma língua. Mas sejamos justos, os estrangeirismos realmente têm o seu charme. Eles dão um air de sofisticação, um je ne sais quoi que parece elevar o status de qualquer coisa, desde um simples dress code no evento da empresa a um Smash Hamburguer Gourmet.

Afinal, quem ainda pronuncia “telefone” quando pode dizer smartphone? Quem se contenta em tirar fotos, se pode tirar selfies? E o Market Place? Muito mais chic do que o bom e velho “comprar pela internet”.

Falar inglês é tão cool que não resistimos à oportunidade de demonstrar isso a todo momento. Reuniões transformaram-se em meetings, pautas em check-lists, abordagem virou approach e até as casas agora são hi-tech. Tudo isso dentro de um grande brainstorm para aumentar o engagement.

Para a experiência gourmet ser completa, não basta importar vocábulos, é necessário remanufaturar, traduzir e adaptar.

No mundo corporativo, onde o “business” é mais “business” do que próprio negócio, não basta mais “agendar” uma reunião; é preciso “schedular”. “Aportuguesar” é o de menos, algumas pérolas nos fazem questionar se estamos falando português ou participando de um spelling bee de inglês.

Por exemplo, o ato de “endereçar um assunto” (to adress) agora virou sinônimo de resolver. Não sei para você, leitor, mas isso soa mais como uma tarefa para os Correios do que uma maneira de resolver problemas. Será que devemos esperar quinze dias úteis para a solução chegar? Ou ela será extraviada no caminho?

Assinar virou sinônimo de designar/alocar (to assign) e “assumir” virou sinônimo de presumir (to assume). “Eu te assino esta tarefa”, diz o chefe, com a pompa de um monarca, enquanto o empregado, confuso, pergunta-se se acabou de ser agraciado ou condenado. Ou, quem sabe, “Eu assumi que você ia fazer isso”, diz o colega, deixando no ar a dúvida se ele realmente tomou a frente da ação ou apenas fez uma suposição muito otimista.

Um verdadeiro ballet de responsabilidades que dançam ao som de um vocabulário globalizado.

Mas calma, nem tudo é fruto da gloriosa terra do Tio Sam. Talvez você não tenha realizado, ou melhor, percebido (to realize), mas nossa língua sempre foi recheada de estrangeirismos. Nenhuma língua viva consegue escapar destas importações e mutações culturais. Não seria no Brasil, um país tão multicultural, que isso seria diferente.

Ao mesmo tempo que “endereçamos assuntos” e “realizamos” ideias com a pompa dos recém-chegados à modernidade, caminhamos sobre um solo repleto de palavras que nos lembram que a nossa língua é muito mais poliglota do que imaginamos.

Palavras como “caipira”, oriunda do tupi ka’apir, ou “cortador de mato”, nos remetem a uma simplicidade e uma conexão com a natureza que contrastam ironicamente com o lifestyle das startups e dos empreendedores de plantão. O tupi também nos deu “abacaxi”, que em tradução livre significaria algo como “fruta que exala cheiro agradável”.

Do Yorubá, língua de várias tribos africanas, herdamos “axé”, uma saudação que carrega consigo força e energia vital, algo que muitas vezes buscamos nos nossos Brainstorms e workshops, na esperança de encontrar soluções mágicas para problemas cotidianos. Sem falar de “samba”, que transcende a mera categoria de gênero musical para expressar a alegria, a resistência e a história de um povo.

Enquanto “schedulamos” nossas reuniões e “performamos” em nossos trabalhos, não podemos esquecer de “cafuné”, essa expressão tão brasileira de afeto, herdada dos povos africanos, que não encontra equivalente em nenhuma língua estrangeira com a mesma carga de ternura e intimidade.

Na mesa, após acenarmos ao garçom para que nos traga o menu enquanto degustamos um delicioso petit gateau, vale lembrar do “tacacá”, prato de origem indígena que combina o exótico com o tradicional muito antes de qualquer french touch invadir nossos cardápios.

Entre um happy hour e outro, talvez devêssemos optar mais vezes por um “caxiri”, bebida fermentada indígena, no lugar de um chope gelado, palavra de origem alemã que significa “copo de meio litro”, medida utilizada para pedir nos balcões dos bares a cerveja do barril.

Mas, eis a questão: será que essa enxurrada de estrangeirismos realmente enriquece nossa língua, ou estaremos nós, lentamente, diluindo nossa identidade cultural num caldo globalizado de difícil digestão? A resposta, como muitas coisas na vida, provavelmente depende do ponto de vista – ou, quem sabe, do insight de cada um.

Cheio de neologismos, estrangeirismos, abreviações e, por que não, uma pitada de ironia, o português já é gourmet e você nem percebeu. Aliás, o Português é gourmet antes mesmo de gourmet ser alguma coisa, uma verdadeira avant-garde linguística. Desde os tempos em que as caravelas traziam novos sabores, costumes e palavras, até a era digital, que nos bombardeia com um léxico globalizado.

Verdade seja dita, não adianta reclamar — como se houvesse quem pudesse nos ouvir —. Assim como a cultura e sociedade brasileira, o português também seguirá mudando e se transformando. Para bem ou para mal, nossa língua seguirá incorporando palavras e transformando significados.

Seja como for, Keep Calm and Carry On, pois o mundo não para.

 


Etimologia da palavra Caipira: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caipira

Etimologia da palavra Abacaxi: https://web.unb.br/tudo-sobre-abacaxi/145-abacaxi

Etimologia da palavra Axé: https://www.significados.com.br/axe/

Origem do Tacacá: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tacac%C3%A1

Etimologia da palavra Chopp: https://opabier.com.br/blog-opa-bier-abc-da-cerveja/chopp-e-cerveja-entenda-as-diferencas/

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Lucas Machado

Oi, meu nome é Lucas Machado e eu sou o Criador e Editor-chefe do Jus Talks. Advogado. Formado pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Membro colaborador da Comissão dos Acadêmicos de Direito e da Comissão da Advocacia Empreendedora e da Inovação da 116ª Subsecção Jabaquara - Saúde da OAB/SP.
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Na era do Global Citizen, entre latte macchiatos e workshops, ficamos com a questão: diante de um português tão gourmet enriquecemos ou diluímos nossa identidade cultural?

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